Por entre os pés-de café



Durante uma dessas tardes meio frias, que se convida a nada fazer, jogar conversa fora, ou até mesmo ouvir conversas, é que me veio a vontade de escrever.
E numa dessas conversas, é que descobri algumas das muitas histórias contadas por minha avó, histórias de menina criada em fazenda, em meio aos escravos ainda, pois é, fiquei encantada e surpresa ao mesmo tempo enquanto ouvia, a voz da sabedoria, adquirida em tantos anos de vida, pra ser exata 93 anos de vida, tem a minha avó.
Conta ela que seu pai, um ríspido e rico fazendeiro daquela época, era plantador de café, num povoado próximo a Caruaru, e a cada 15 dias vinha a Caruaru, negociar suas safras de café, bem como seus produtos derivados de leite.
E sendo ele um homem extremamente pré-conceituoso, não tinha em sua conta de fazendeiro e cultivador de café, que um negro fosse gente, como ele mesmo dizia, negro é bicho, agente compra pelos dentes e pela força pra o trabalho.
Ouvindo minha avó falar isso, me sentia num cenário de livro, como se ele meu bisavô, fosse um desses personagens, de histórias. Era difícil conceber um homem assim verdadeiramente, um homem que ao sair de casa, mantinha um ritual diário, rezava rapidamente, entregava a vida a Nossa Senhora, e pedia proteção pra nenhum mal lhe acontecer. O interessante nesse pedido é que segundo minha avó, ele sempre dizia que não era bom encontrar um negro ou um índio no caminho, era sinal de que os negócios iam dar errado, era sinal de azar.
E muitas vezes nas suas viagens, sempre a cavalo, se ele visse um negro ao longe, nem esperava pra chegar perto dele, dava meia volta com o cavalo, e a galope voltava pra fazenda, onde entrava xingando e maldizendo a existência do negro maldito, como ele chamava.
Engraçado essas revelações porque, muitas vezes agente acredita que apenas os livros e as novelas de época é onde vivem esses personagens, que por mais que agente saiba que existiram, é estranho perceber, que um deles era seu, pertence a sua família.
Além de não suportar verdadeiramente a presença negra, que por ordem dele, não podiam entrar num certo galpão onde eram feitos os queijos, as manteigas e os doces de leite, pois segundo ele, quando um negro entrava no galpão e na hora estivesse mexendo-se o leite para qualquer fim, era perdido, podia jogar fora, pois para ele o leite tinha acabado de estragar, com a simples presença do negro.
E foi dessa forma que minha avó cresceu, rodeada por negros, mas sem tê-los como gente, como pessoas, e sim como objetos, apenas como mão de obra; e muito dessa criação sobraram em sua vida, o pré-conceito a seguiu durante toda sua vida; não digo que hoje ela pense igual ao pai, porém as seqüelas ficaram, e sempre que vê alguém negro ela resmunga baixinho” isso num deve ser gente que preste”, já vi ela fazendo isso algumas vezes, depois que ela conhece de perto( sim porque graças a Deus ela se dá essa chance) de chegar perto de um negro, e ai ela resmunga mais uma vez baixinho “ mais num é que ele é uma pessoa boa”.
Algo interessante aconteceu com ela, quando certo dia precisou reformar algumas pequenas coisas em casa, ela pediu pro meu pai arrumar um pedreiro; advinhem quem meu pai mandou pra casa dela, pois é mandou uma pessoa negra, um senhor que sempre fez trabalhos de pedreiro pro meu pai, e alguém que ele sempre confiava.
Quando ele chegou lá, no dia seguinte ela disse pro meu pai, porque você mandou um peste dum nêgo? Tinha ninguém que prestasse não era?
E meu pai respondeu com outra pergunta: ele fez o serviço?
Ela respondeu fez.
Meu pai perguntou e prestou?
Ela respondeu; é ficou bonzinho.
Alguns anos mais tarde ela se tornaria madrinha da filha mais nova dele, anos depois madrinha de casamento da afilhada.
Que vale lembrar filha de um negro pedreiro!


Contos: Por Ailza Trajano
Foto: Minha avó (paterna) Emilia

Comentários

ah!!!! adoro essas histórias!

=D

pena q as que escuto, não são de gente tão antiga, com história, MUITA história pra contar...

adorei essa!

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